Anotações sobre uma amor urbano.

Anotações sobre uma amor urbano"">Anotações sobre uma amor urbano

Por Caio Fernando Abreu


Desculpa, digo, mas se eu não tocar você agora vou perder toda a naturalidade, não conseguirei dizer mais nada, não tenho culpa, estou apenas sentindo sem controle, não me entenda mal, não me entenda bem, é só essa vontade quase simples de estender o braço pra tocar você, faz tempo demais que estamos aqui parados conversando nessa janela, já dissemos tudo o que pode ser dito entre duas pessoas que estão tentando se conhecer, tenho a sensação, impressão, ilusão de que nos compreendemos, agora só preciso estender o braço e com a ponta dos meus dedos tocar você, natural que seja assim: O toque, depois da compreensão que conseguimos, e agora.

Não diz nada, você não diz nada. Apenas olha pra mim, sorri. Quanto tempo dura? Faz pouco despencou uma estrela e fizemos, ao mesmo tempo e em silêncio, um pedido, dois pedidos. Pedi pra saber tocá-lo. Você não me conta seus desejos. Sorri com os olhos, com a mesma boca que mais tarde, um dia, depois daqui, poderá dizer: Não. Há uma espécie de heroísmo então quando estendo o braço, alongo as mãos, abro os dedos e brota. Toco. Perto da minha boca se entreabre lenta, úmida, cigarro, chiclete, conhaque, vermelho, os dentes se chocam, leve ruído, as línguas se misturam. Naufrago em tua boca, esqueço, mastigo tua saliva, afundo. Escuridão e umidade, calor rijo do teu corpo contra a minha coxa, calor rijo do meu corpo contra a tua coxa. Amanhã não sei, não sabemos.

Pensei em você. Eram exatamente três da tarde quando pensei em você. Sei porque perdi a cabeça como se você fosse uma tontura dentro dela e olhei o digital no meio da avenida.

Corre, corre. O número do telefone dissolvendo-se em tinta na palma da mão suada. Ah, no fim destes dias crispados de início de primavera, entre os engarrafamentos de trânsito, as pessoa enlouquecidas e a paranóia à solta pela cidade, no fim desses dias encontrar você que me sorri, que me abre os braços, que me abençoa, e passa a mão na minha cara marcada, no que resta de cabelos na minha cabeça confusa, que me olha no olho e me permite mergulhar no fundo quente da curva do teu olho. Mergulho no cheiro que não defino, você me embala dentro dos seus braços, você cobre com a boca meus ouvidos entupidos de buzinas, versos interrompidos, escapamentos abertos, tilintar de telefones, máquinas de escrever, ruídos eletrônicos, britadeiras de concreto, e você me beija e você me aperta, e você me leva para Creta Mikonos, Rodes, Patmos, Delos, e você me aquieta repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem. O telefone toca três vezes. Isto é uma gravação deixe seu nome e telefone depois do bip que eu ligo assim que puder, ok?

O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias. Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro grudado no meu. E basta fechar os olhos pra naufragar outra vez e cada vez mais fundo na tua boca. Abismos marinhos, sargaços. Minhas mãos escorrem pelo teu peito, gramados batidos de Sol, poços claros. Alguma coisa então pára, as coisas param. Os automóveis nas ruas, os relógios nas paredes, as pessoas nas casas, as estrelas que não conseguimos ver aqui no fundo da cidade escura. Olho no poço do teu olho escuro, meia noite em ponto. Quero fazer um feitiço pra que nada mais volte a andar. Quero ficar assim, no parado. Sei com medo que o que trouxe você aqui foi esse me jeito de ir vivendo como quem pula poças de lama, sem cair nelas, mas sei que agora esse jeito se despedaça. Torre fulminada, o inabalável vacila quando começa a brotar de mim isso que não esta completo sem o outro. Você assopra na minha testa. Sou só poeira, me espalho em grãs invisíveis pelos quatro cantos do quarto.

(...) Fico tosco e você se assusta com minha boca faminta voraz desdentada de moleque mendigo pedindo esmola neste cruzamento aonde viemos dar.

A cidade está louca, você sabe. A cidade está doente, você sabe. A cidade está podre, você sabe. Como gostar limpo de você no meio desse doente podre louco? Urbanóides cortam sempre meu caminho à procura de cigarros, fósforos, sexo, dinheiro, palavras e necessidades obscuras, que não chego a decifrar em seus olhos semafóricos. Tenho pressa, não podemos perder tempo. Como chamar agora a essa meia dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade da peste? (Amor, amor certamente não). Como evitaremos que nosso encontro se decomponha, corrompa e apodreça junto com o louco, o doente, o podre? Não evitaremos. Pois a cidade está podre, você sabe. Mas a cidade esta louca, você sabe. Sim a cidade está doente, você sabe. E o vírus caminha em nossas, companheiro.

Fala, fala, fala. Estou muito cansado. Já não identifico nenhuma palavra no que diz. Apenas me deixo embalar pelo ritmo de sua voz, dentro dessa melodia monótona angustiada perplexa repetitiva. Quase três da manhã. Não temos onde ir, nunca tivemos aonde ir. Um nojo, vez em quando me dá asco - nojo é culpa, nojo é moral - você se sente sórdido, baby? - eu tenho medo, eu não quero correr risco - não é mais possível - vamos parar por aqui - quero acordar cedo, fazer cooper no parque, parar de beber, parar de fumar, parar de sentir - estou muito cansado - não faz assim, não diz assim - é muito pouco - não vai dar certo - anormal, eu tenho medo - medo é culpa, medo é moral - não vê que é isso que eles querem que você sinta? Medo, culpa, vergonha - eu aceito, eu me contento com pouco - eu não aceito nada nem me contento com pouco - eu quero muito, eu quero mais, eu quero tudo!

Eu quero risco, não digo. Nem que seja a morte.

Cachorro sem dono, contaminação. Sagüi no ombro, sarna. Até quando esses remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos rombos do nosso encontro? Como se lutássemos - só nós dois, sós os dois, sóis os dois - contra dois mil anos amontoados de mentiras e misérias, assassinatos e proibições. Dois mil anos de lama, meu amigo. Tantos lixos atapetando as ruas que suportam nossos passos que nunca tiveram aonde ir.

Chega em mim sem medo, toca meu ombro, olha nos meus olhos, como nas canções do rádio. Depois me diz: "-Vamos embora para um lugar limpo. Deixe tudo como esta. Feche as portas, não pague as contas e nem conte a ninguém. Nada mais importa. Agora você me tem, agora eu tenho você. Nada mais importa. O resto? Ah, os restos são restos. E não importam. Mas seus livros, seus discos, quero perguntar, seus versos de rima rica? Mas meus livros, meus discos, meus versos de rima pobre? Não importa, não importa. Largo tudo. Venha comigo pra qualquer outro lugar. Triunfo, Tenerife, Paramaribo, Yokohama. Agora já. Peço e peço e não digo nada, mas peço peço diga, diga já, diga agora, diga assim. Você planeja partir para um país distante, sem mim, de onde muitos anos depois receberei a carta de um desconhecido com nome impronunciável anunciando a sua morte. Foi em Abril, dirá abril e maio. Ou Setembro, Outubro. Os mais cruéis dos meses. Tanto faz, já não importará depois de tanto tempo, numa cidade remota.



Pelas escadarias da avenida deserta, lata de coca-cola largada na porta da igreja, aqui parece que o tempo não passou, quero te mostrar um vitral, esta sacada, aquele balcão como os de Lorca, entremeado de rosas, quero dividir meu olhar, desaprendi de ver sozinho e agora que tudo perdeu a magia, se magia houve, e havia, e não consigo mais ver nenhum anjo em você, pastor, mago, cigano, herói intergaláctico, argonauta, repercante, e agora que vejo apenas um rapaz dentro do qual a morte caminha inexorável, só não sabemos quando o golpe final, mas virá, cabelos tão negros, rosto quase quadrado, quase largo, quase pálido onde já começou a devastação, olhos perdidos, boca de naufrágio vermelho pesado sobre o escuro da barba malfeita, olho tudo isso que vejo e não tem outra magia além dessa, a de ser real, e vou dizendo lento, como quem tem medo de quebrar a rija perfeição das coisas, e vou dizendo leve, então, no teu ouvido duro, na tua alma fria, e vou dizendo leve, e vou dizendo longo sem pausa - gosto muito de você de você muito de você.

Tantas mortes, não existem mais dedos nas mãos e nos pés pra contar os que se foram. Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas, uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã. Mas o poço não tem fundo, persiste sempre por trás, as cobras no fundo enleadas na lança. Por favor, não me empurre de volta ao sem volta de mim, há muito tempo estava acostumado a apenas consumir pessoas como se consome cigarros, a gente fuma, esmaga a ponta no cinzeiro, depois vira na privada, puxa a descarga, pronto, acabou. Desculpe, mas foi só mais um engano? E quantos mais ainda restam na palma da minha mão?
Ah, me socorre que hoje não quero fechar a porta com esta fome na boca, beber um copo de leite, molhar plantas, jogar fora jornais, tirar o pó de livros, arrumar discos, olhar paredes, ligar desligar a TV, ouvir Mozart para não gritar e procurar teu cheiro outra vez no mais escondido do meu corpo, acender velas, saliva tua de ontem guardada na minha boca, trocar lençóis, fazer a cama, procurar a mancha de esperma nos lençóis usados, agora está feito e foda-se, nada vale a pena, puxar cobertas, cobrir a cabeça, tudo vale a pena se a alma, você sabe, mas a alma existe mesmo? E quem garante? E quem se importa? Apagar a luz e mergulhar de olhos fechados no quente fundo da curva do teu ombro, tanto frio, naufragar outra vez em tua boca, reinventar no escuro do teu corpo de moço homem apertado contra meu corpo de moço homem também, apalpar as virilhas, o pescoço, sem entender, sem conseguir chorar, abandonado, apavorado, mastigando maldições, dúbios indícios, sinistros augúrios, e amanhã não desisto. Te procuro em outro corpo, juro que um dia te encontro

Não temos culpa. Tentei. Tentamos.

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